Professora de Caeté-Açu apresenta práticas de referência inspiradas em conteúdos da Formação Continuada

Palavras-chave:
A trilha proposta pela Formação Continuada Territorial da Secretaria de Educação do Estado da Bahia leva sempre ao mesmo destino. Em 417 cidades diferentes, este caminho contorna obstáculos, busca atalhos, diminui o ritmo, quando necessário, mas sempre avança em direção à evolução das aprendizagens dos estudantes. Com o leme controlado pela Secretaria da Educação do Estado da Bahia, por meio do Instituto Anísio Teixeira (IAT), muitos são os comandantes que ‘tocam o barco’ em um regime colaborativo, essencial para o desenvolvimento de um processo educacional eficaz. 
 
Coordenadores pedagógicos, gestores escolares e membros das equipes técnicas das secretarias municipais e Núcleos Territoriais de Educação (NTEs) pulverizam a formação recebida no IAT, a fim de que os conteúdos e discussões cheguem até as salas de aula, mesmo em lugares remotos. Além disso, garantem que o dia a dia nestas salas seja o conteúdo principal da formação, através da tematização da prática e, especialmente, do intercâmbio de experiências.
 
No distrito de Caeté-Açu, zona rural do município de Palmeiras, localizado no NTE 3 (Chapada Diamantina), a professora Enilzete Mendes e a coordenadora Rosana Mercês, da Escola Municipal de Primeiro Grau de Caeté-Açú, dão exemplo de como percorrer esse caminho de forma a impactar verdadeiramente a aprendizagem e a vida dos estudantes. A coordenadora faz parte da formação continuada desde o início, em 2019, sempre fazendo a ponte entre a formação e os professores. “Ao passo que aprendi e expandi meus saberes, eu os repassei para os professores em meu fazer pedagógico, nos planejamentos coletivos e formativos. Todos os planejamentos são formativos e de troca de experiências, exitosas ou não”, conta Rosana.
 
A coordenadora destaca um dos aspectos de maior contribuição da formação: “A compreensão de que é no contexto do meu trabalho, que é a mediação entre as diferentes instâncias (gestão, educadores, educandos, famílias, comunidade), que devo, como profissional, exercer a função de articulação, formação e transformação da realidade”. Rosana faz parte da turma da formadora Maria Joselma Noronha que, recentemente, trabalhou a leitura e produção textual sob diversos aspectos, como a diversidade cultural e de linguagem, as formas de trabalho no contexto da realidade local e comunitária, o uso da leitura e escrita em práticas diferenciadas do cotidiano, além de reforçar o entendimento de que a leitura é um compromisso interdisciplinar.
 
Todo esse conteúdo ecoou no coração da professora Enilzete que, ao longo dos seus mais de 20 anos de profissão,desenvolveu um olhar atencioso e uma prática voltada para a transformação social. Filha de um agricultor autodidata e de uma professora disfarçada de mãe, sempre ouviu seu pai lhe dizer (e aos seus outros 13 irmãos) que o maior bem que um homem pode deixar aos filhos é a educação. A mãe, não menos entusiasta dos processos educativos, foi a responsável por alfabetizá-la, escrevendo atrás da porta da cozinha com carvão os nomes das frutas que eles tinham no quintal. Jabuticaba, laranja, banana, jaca e tantas outras passaram a ser parte não apenas da sua realidade de subsistência, mas também foram as primeiras responsáveis por descortinar as janelas - ou portas - do conhecimento. 
 
“Eu ficava encantada com minha mãe escrevendo atrás da porta da cozinha, achava aquilo muito bonito. Pedi para ela me ensinar a ler e escrever. Minha brincadeira preferida era ser professora, me imaginava dando aula para uma sala cheia. Passei a riscar, também com carvão, a porta de um dos quartos da casa, era o meu quadro”.
 
O problema, na época, era que, no distrito, também conhecido desde esse tempo como Vale do Capão, não tinha escola. A escola mais próxima ficava na sede do município, a 22km. Nem isso foi empecilho para que Enilzete começasse os estudos. Sabendo da necessidade de ter uma escola na comunidade, seu pai escolheu um local e providenciou que a prefeitura comprasse o terreno para iniciar a construção da escola. 
 
Ela se formou professora e o compromisso que seus pais fizeram com a sua educação, mais tarde, seria o mesmo que, hoje, ela tem com a educação de todos os estudantes que passam pelas suas aulas. “A maneira mais eficiente de escravizar o povo é negar a ele o direito à educação”, testemunha. Um dos maiores incentivos para se dedicar à educação como profissão foi o da sua professora de língua portuguesa, Cybele Amado, hoje diretora-geral do IAT. Mais tarde, se encontrariam novamente, ela professora e Cybele coordenadora na mesma escola. 
 
Assim, nascida, criada e lecionando na comunidade, Enilzete conhece bem a realidade local. Mas a percepção de que os alunos não tinham esse conhecimento foi o ponto de partida para que ela iniciasse uma série de projetos que os aproximasse das suas raízes culturais e históricas. “Percebi que meus alunos não conheciam a história local. Nas leituras em livros e sites, eles acreditavam que tudo que escreviam sobre o Capão era verdade.”
 
Concomitantemente, a formação trabalhava a leitura em todas as áreas do conhecimento. “Esse trabalho me fez refletir muito sobre a minha prática. Tem muito professor que acredita que ler e escrever é responsabilidade apenas de língua portuguesa, mas não é. Estudei como vivenciar de verdade a leitura em todas as áreas e através dessa leitura fomos descobrindo muita coisa, como rendeu!”. Nas aulas, mergulharam em diferentes fontes de informação e puderam analisar livros, notícias, histórias e até teses de mestrado. Para surpresa de todos, muito do que se contava sobre a comunidade não era verdade. 
 
A professora então trouxe para a discussão as origens indígenas, africanas, das comunidades quilombolas que viveram no entorno e até a influência das culturas estrangeiras presentes na localidade. “O objetivo número um era conhecer a própria história para reconhecer a contribuição de diferentes povos na construção sócio-histórica do lugar. Língua portuguesa para mim não é só ensinar gramática, é trazer o mundo para a sala de aula e analisá-lo”. 
 
Até que um dia, um aluno a questionou sobre a representação do Nordeste observada em diversas pesquisas: “Por que só aparece a carcaça de um boi morto? É sempre a seca e nunca a Chapada”. Foi então que ela se deu conta de que o livro didático estava alheio à realidade local e, mais uma vez, saiu da zona de conforto. “Quando um aluno me fala um negócio desses, eu preciso mudar, não posso ficar no livro didático. O material didático também pode ter a realidade deles. Aí eu fui criar, na maior cara de pau”. 
 
A professora passou a criar seu próprio material didático, incluindo apostilas e exercícios que eram enviados para os estudantes. Textos instrucionais com receitas originais da localidade, sequências didáticas estudando folclore com base nas lendas regionais, além de ilustrações e imagens do distrito. “Pense na cara desses meninos quando receberam esse material. Felicidade pura. As famílias tomaram um susto e eu também me assustei pelo tamanho da plateia. As pessoas comentando na rua e os pais assistindo às aulas junto com os alunos. Teve um pai, que é guia de turismo, que passou a assistir às aulas para embasar o seu trabalho, assim poderia explicar aos turistas os significados dos nomes dos atrativos e a história da comunidade.” 
 
Outras iniciativas também “mexeram” com a comunidade. Estudando slogans, a professora propôs que os alunos criassem pensando no comércio local. Foi um verdadeiro sucesso, os pontos comerciais adotaram os slogans produzidos e hoje muitos aguardam a segunda edição da atividade. Os estudantes também ilustraram contos de um autor local, cujo próximo livro será novamente ilustrado pelos meninos e meninas da escola.
 
Neste “mergulho profundo na história”, como ela gosta de falar, outro aspecto chama atenção. Segundo a professora, era muito comum os alunos copiarem o que liam na internet para responder às pesquisas e usarem como ilustração fotos que encontravam na rede, sem se atentar aos direitos autorais. Ela passou então a trabalhar com as mídias digitais, explorando a diferença entre presença digital e cidadania digital. “Hoje pensam 10 milhões de vezes antes de pegar imagem na internet e copiar, existe lei, alguém que fotografou, direitos autorais. É papel do professor abrir os olhos dos meninos sobre a internet.”
 
Nesta parte do trabalho, empatia e formas de se posicionar em redes sociais também foram tratados. “Trabalhei adjetivos, como o uso de palavras bem ditas e malditas, o poder que o adjetivo tem. Um cidadão digital não sai por aí em redes sociais escrevendo palavras malditas, ele se coloca no lugar do outro, tem empatia. Além disso, com a constante análise dos textos, eles formam uma consciência crítica capaz de discernir sobre o que lêem num mundo em que temos muitos produtores de conteúdo.” 
 
A professora, que também criou uma biblioteca virtual com livros baixados de forma legal na internet, conta que já percebe uma diferença significativa na escrita dos alunos e na sua capacidade argumentativa.  “Quando eles estudam o que está próximo, eles conseguem linkar com o que está mais distante, quando vêem um texto de outra realidade, eles já conseguem analisar. Partimos do território como identidade: o local com o global. Esse global não existiria sem mim, eu também faço parte.”
 
Para a coordenadora Rosana, esse trabalho demonstra amor e respeito pela comunidade. “Ele serve de referência para professores que atuam em outras disciplinas. A professora demonstra o amor e a dedicação do educador popular (em referência a Paulo Freire) que quer que a comunidade se conscientize de sua força, se aproprie desses saberes e em retorno fortaleça a sua identidade local”.
 
Enilzete faz suas previsões: “Imagina como eles estarão daqui a uns três anos!”, fazendo referência ao desenvolvimento dos alunos. O seu fazer tem referências no passado, na alfabetização com carvão e no legado do pai. No exercício da simplicidade e paciência reside a força do seu fazer. Assim como a mãe, potencializa os recursos que tem para provocar a evolução das aprendizagens dos meninos e meninas de Caeté-Açu, praticando as referências de Paulo Freire e fazendo-nos crer que a educação é, de fato, um ato de coragem e, sobretudo, de amor.

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